25/04/2011

A MISTIFICAÇÃO DA GRAÇA

          O educador Paulo Freire dizia que é necessário falarmos do que é óbvio, porque, muitas vezes, por ser tão óbvio deixa de ficar claro ou tão claro quanto desejamos.
          Nossas pregações “teológicamente perfeitas” e, cada vez mais criativas e sensacionalistas, aos poucos têm nos feito esquecer do “Evangelho Óbvio” que tem no sacrifício na cruz o seu eixo central; que tem através da graça sua justificação; que tem no amor de Deus a esperança do porvir.
          De tão óbvio que Deus nos ama, já não pregamos acerca desse amor; de tão óbvio que o inferno é real (e não é aqui), em nossos púlpitos já nem mencionamos essa palavra; de tão óbvio que Jesus virá em breve buscar os Seus, já não é preciso gastarmos tempo com esse tipo de mensagem; de tão óbvio que é necessário arrependimento para receber salvação, este é um assunto já quase abandonado em nossos cultos. Afinal, o óbvio, ou seja, aquilo que salta à vista; que é claro; manifesto; patente; visível; que não pode ser questionado ou discutido, incontestável; que se conhece ou espera previamente; previsível; aquilo que é manifestamente evidente; é tratado como algo comum, cuja prioridade é secundária.
            Nossa necessidade de experimentarmos coisas extraordinárias, sensoriais e místicas tem nos levado a tratarmos aquilo que realmente importa como se fossem itens de segunda categoria do Reino dos Céus. Na passagem de Jesus no tanque de Betesda em Jerusalém o “óbvio” era a presença do próprio Deus manifesto em Jesus, mas isso parece não ter atraído a multidão, uma vez que esta preferiu a manifestação espetacular do anjo movendo as águas.
            Há muitos que ainda esperam a grande apostasia dos últimos dias, mas, particularmente, eu creio que esta já começou há muito tempo e nem nos demos conta. Já abandonamos a alegria da “simples” presença do Senhor, queremos o espetáculo. Abandonamos a fé no poder puro e “simples” de Deus, precisamos de amuletos em forma de lencinhos, pedrinhas de Israel, sabonetes, etc., para crer que o Criador é realmente capaz de fazer milagres. Abandonamos a graça, que é o favor que não merecemos, e nos apegamos aos sacrifícios que nos “tornam dignos de tomarmos posse” do Reino.  
            A mistificação da graça trouxe de volta a lei. E assim, nada mais é realmente graça de Deus, tudo é conquistado pelos nossos esforços humanos que nos tornam merecedores daquilo que na verdade é pela misericórdia, amor, fidelidade, graça de Deus.
            Nos apegamos novamente à lei das ofertas, do sacrifício, do martírio, da auto-justificação, e nem sequer nos apercebemos que se vivermos pela lei, por ela seremos julgados, e por ela, certamente seremos condenados. “É evidente que diante de Deus ninguém é justificado pela lei…”. Gl. 3:11; “Pois quem obedece a toda a lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la inteiramente” - Tg. 2:10.
            A graça, no entanto, não é mística, não é espalhafatosa, extravagante, fantasiosa. Ela não requer adereços, sensacionalismos, experiências extra-corpóreas, conhecimento do mundo espiritual, rituais, e/ou novas revelações. A graça é vida, é plenitude de alegria, é relacionamento com Deus e com as pessoas (independentemente de quem sejam); a graça é amor no coração, é satisfação na alma, é paz no espírito. E o melhor, a graça é de graça, pois na verdade, nada do que fizermos jamais será suficiente para nos fazer merecedores de coisa alguma. Achar que se pode conquistá-la é, no mínimo querer pagar com suor e lágrimas um preço que já foi pago com sangue. “Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça vem da lei, Cristo morreu inutilmente” - Rm. 2:21.   
           A verdade é que nos acostumamos a pensar nas coisas de Deus sempre como sendo algo misterioso, de sentido oculto, místico, e, com isso, deixamos de lado o simples, o natural, o óbvio. Parece até que o grande milagre da vida que se renova em nós a cada dia não é tão importante, afinal, não traz consigo “nada” de sobrenatural, transcendental ou extraordinário. Já não é suficiente apenas crer na presença doce do Espírito Santo habitando em nós, precisamos sentir calafrios na espinha. A certeza da eternidade com Deus já não nos conforta, precisamos da vida extravagantemente confortável ainda neste mundo. A salvação já não nos consola, precisamos dos bens materiais para aplacar nossas tristezas e frustrações.
          Talvez a graça tenha se tornado “simples” demais, e por isso tenha perdido seu poder. Precisamos de “bezerros” para adorar, de “mantras” para entoar, de artistas que nos “ensinem” a louvar, de manuais de exorcismo, e de novas revelações sobre os reinos de Deus e do diabo. A frase “a minha graça é suficiente para você, pois meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”, dita pelo Senhor a Paulo, não se aplica a nós, pois, precisamos de algo mais.
           Até parece que o Consolador já não consola, que o Senhor já não governa, e que o Rei já não reina mais. Não precisamos pedir que o Senhor nos dê mais graça. Precisamos sim, aprender a viver na Sua Graça, que já é abundante sobre nós!    

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